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A história de dor e conquistas de ‘Seu Cachoeira’ em Serra Talhada

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A história de dor e conquistas de ‘Seu Cachoeira’ em Serra Talhada

A história de dor e conquistas de 'Seu Cachoeira' em Serra Talhada

Pisamos em solo sagrado. Não com os sapatos corretos ou com as intenções corretas, talvez. Mas havia um sinal naquele canto da calçada, entre os calçados que jaziam sem donos abaixo das mãos de Seu João Batista, ou  “Cachoeira”; como é mais conhecido.

Um par de olhos de 71 anos, um corpo negro e sereno, algumas latinhas de graxa e uma barba como rastro do tempo nos saudaram com uma mudez despreocupada. Jovens e impacientes imploramos do melhor jeito jornalístico que  nos contasse sua jornada como pai.

Ele sorriu, se desconfiou, olhou para os lados desacreditando que duas moças estavam realmente perguntando sobre um tema tão inexplorado e quase etéreo quanto a paternidade. Com paciência e nos adotando por alguns minutos, Cachoeira descreveu em sentenças curtas respondidas à nossa curiosidade de ofício.

A história de dor e conquistas de 'Seu Cachoeira' em Serra Talhada

Aos seis anos de idade, deixou Monteiro/PB e veio para Serra Talhada. Aqui construiu sua vida. Foi casado por 38 anos e teve cinco filhos. A esposa faleceu há oito anos e dois de seus filhos também partiram dessa existência. Um deles, que seu Cachoeira chama de “meu Menino”, como aquela única conta de Pai-Nosso entre as dez Ave-Marias de um terço, o ajudava no serviço de ressuscitar os sapatos que um dia carregaram os caminhos de alguém. Este filho era o Cristiano, levado perdido para a Covid-19.

“Quando meu menino morreu, passei 2 meses em casa e foi um inferno para mim. Porque a gente fica só pensando besteira, mas aqui no trabalho eu me divirto, pelo menos aqui tem o pessoal que me conhece e a gente conversa. Hoje se eu fosse viver disso aqui, eu não criaria filho nenhum. As coisas estão mais difíceis. Hoje é só tênis, tênis, tênis e pouco sapato. Tem os pregos, mas faltam os sapatos”.

A história de dor e conquistas de 'Seu Cachoeira' em Serra Talhada

Não há muitos sapatos, além dos que foram abandonados por seus donos. Mas, para Cachoeira ainda há uma dezenas ou centenas de esperanças feito as cerdas das escovas gastas pelas horas. Na fé, enquanto devoto de Nossa Senhora Aparecida, o sapateiro viu que os dias ainda poderiam dormir e acordar que não tão firme e forte ele continuaria respirando, mas continuaria.

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“Os netos que moram em Goiás eu conheço só pelo celular. A vontade era muita de ir para lá. Mas depois que meu menino morreu ficou mais difícil. Participo todo dia dos terços pelo celular ou pela televisão. Nunca me apartei desse terço [no pescoço]. Tudo que peço a Nossa Senhora, ela me dá. Ela é uma companhia e grande para mim. Primeiramente o filho e segundo ela” assegurou como pai, como filho.

Mesmo após as perdas, e sobrando alguns filhos, 15 netos e 4 bisnetos, Cachoeira nos diz, e até vacila, sobre sua solidão de pai, de esposo. Algo nos lábios se conforma ou se transforma com os mais de 46 anos exercendo os trabalhos de sapateiro, chaveiro e paneleiro.

Para ele, depois de Nossa Senhora Aparecida de seu filho Jesus Cristo e de seus dois pinscher, Rubinho e Kiki, trabalhar, assim na terra como no céu, é uma bem-vinda companhia.

“Criei todos os meus filhos com esta profissão de sapateiro. Graças a Deus não foi difícil sustentar eles. Estou só, sozinho e Deus. Perdi minha mulher e esse menino que morreu por último era quem tomava conta de mim. Jesus levou, e praticamente fiquei sozinho. Para não dizer que não tenho nada, tenho dois cachorrinhos. Rubinho e Kiki. Amo eles demais. São dois pinscher. Eles não podem ver uma pessoa que querem abraçar. A raça dele é de valentes e perigosos. Mas os meus não. Eles nunca morderam ninguém” confessou.

Como um pai, que nós não conhecemos e talvez jamais conheceremos, mesmo os que ainda vivem ao nosso lado, João Batista, o Cachoeira enumerou, como se fosse conselhos (que nunca iremos receber) uns poucos desafios da idade que vão tornando o pão nosso de cada dia um pouco mais difícil de ser tragado. Sobreviver a um AVC, lutar contra suas sequelas, driblar a artrose, suportar uma hérnia, vão santificando sua coragem e seu nome.

A história de dor e conquistas de 'Seu Cachoeira' em Serra Talhada

Como um pai, ele foi perdoando as ofensas da vida e muitas vezes caindo em tentação, mas dia após dia, ao levantar da cama, fazer carinho nos cachorros, colocar a caixa de som e abrir a caixa onde dormem os sapatos sem donos, Cachoeira como um rio que desconhece a ausência das correntezas; vai se livrando do mal. Amém.

“Não tenho nem o que dizer [sobre o dia dos pais]. O conselho que  dou é que os pais prezem por seus filhos enquanto eles estão vivos. Porque depois que eles morrerem… não tem como voltar. Antes do meu menino morrer, eu estava saindo daqui. Mas depois que ele morreu, eu voltei. Hoje isso aqui é minha diversão. Em casa a gente morre mais ligeiro”.

Fonte: faroldenoticias.com.br